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Luminosas, Uivantes, Tátil-Olfativas e Pulsantes. Eis as esculturas de Maurício Salgueiro
Frederico Morais

‘Um percurso evolutivo da série "Urbs" – postes de madeira, esculturas lumino-sonoras, esculturas-neons, esculturas-máquinas, com lâminas uivantes, esculturas-pulsantes – vazantes, pias, tanques – evidenciando a confluência do visual-sonoro-tátil-olfativo, é o que Mauricio Salgueiro vai apresentar a partir de amanhã, no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, no Campo São Bento, em Niterói.

Será esta a primeira vez que o público verá num único recinto esculturas representativas das várias fases das esculturas de Mauricio Salgueiro, mas sempre explorando coerentemente o binômio cidade/máquina. E, além das esculturas, uma série de trabalhos recentes, bidimensionais, tendo como base a fotografia.’

Formado pela Escola Nacional de Belas Artes, com especializações em Londres e Paris (onde expôs individualmente, apresentado por Pierre Restany, e fez grande sucesso, na Bienal de Jovens), Mauricio Salgueiro destaca-se entre nossos escultores pela falta de timidez e pela complexidade de seus projetos, em que a tecnologia se faz sempre presente. Num país onde escasseia a escultura - que exige ateliês espaçosos e recursos financeiros, a que ainda não conseguiu conquistar os colecionadores - é sempre bom poder saudar uma exposição de um escultor, mesmo se, para isso, for preciso atravessar a ponte Rio-Niterói.

Mas em que consiste o projeto ‘Urbs’, que o Mauricio Salgueiro vem desenvolvendo coerentemente há cerca de 12 anos?

O projeto futurista de reconstrução do universo encarava a cidade como "um imenso canteiro de construção naval, cheia de barulho e movimento" , os planos, perfis, cavidades e motores das máquinas "como elementos naturais para a construção de uma nova paisagem", Para os futuristas, era preciso substituir as velhas emoções estáticas por outras, mais dinâmicas, proporcionadas pelos ruídos e odores de motores e máquinas, pois só assim o homem moderno poderia acumular "energia suficiente para a eterna renovação da vida". Na sua entusiástica adesão á civilização moderna, os futuristas não apenas viam na máquina uma beleza superior à arte, como identificaram nela preocupações especialmente humanas. "A dor de um homem" – dizia Marinetti – "é interessante para nós tanto quanto a de uma lâmpada elétrica, que sofre, que se retorce em espasmos, e que grita com a expressão mais lancinante de dor"

O tempo se encarregou de corrigir os excessos dos futuristas italianos, bem como suas perigosas distorções ideológicas. Porém, mais de meio século depois, é indiscutível a importância e, sobretudo, a atualidade do futurismo (Milão, 1910). Foi um movimento radical – isto é, um movimento que foi à raiz da sensibilidade moderna ao constatar que "a condição humana" está indissoluvelmente ligada à "condição da máquina".

Cidade|Máquina
Desde o início de sua carreira, Mauricio Salgueiro revelou esta preocupação "futurista’ com a máquina, isto é, compreendeu que o alargamento de nossa percepção dependerá do tipo de relacionamento que estabelecermos com as máquinas que envolvem nossa existência cotidiana. Se a arte é um poderoso instrumento de aprofundamento no ser humano, sua prática não pode ser entendida como fabricação de objetos ornamentos para embelezar nosso décor cotidiano. Produzir até é produzir conceitos. Portanto, se excluirmos a produção inicial, característica dos momentos de formação, ainda sob o influxo das lições escolares e das influencias bem ou mal assimiladas, podemos dizer, sem erro, que o binômio cidade|máquina foi, sempre, a preocupação de Mauricio Salgueiro como escultor.

Os primeiros trabalhos da série "Urbs" (a partir de 1964) são postes de madeira com fios e isoladores de energia, os quais, mesmo pintados de branco, permanecem rudes e toscos, como aqueles que encontramos nos caminhos de terra das cidades interioranas ou nas favelas que sobem o morro ou nas encostas da cidade grande. Deles emana uma certa nostalgia de outros tempos e espaços – o ontem e a roça. São quase "humanos" na falta de jeito, na pobreza franciscana dos materiais ou na sua execução artesanal. Neles, entretanto, Salgueiro já introduz circuitos elétricos que fazem vibrar nervosamente os isoladores.

Depois ou simultaneamente, realizou esculturas nas quais empregou chapas de ferro e sucata industrial. No tratamento da chapa persiste um certo expressionismo de suas fases anteriores, como a predileção pelas texturas e surpefícies rugosas obtidas com solda elétrica.

O uso de material heteróclito - faróis de trânsito, buzinas, fios, ferramentas ou quase-ferramentas – sem dúvida tem alguma coisa a ver com os processos acumulativos e
aprimorativos da pop-art e do novo realismo. A intenção de Salgueiro, porém, é menos a de fazer uma crítica da sociedade tecnológica ou de consumo, de encarar a arte como uma espécie de "relais" sociológico. Mesmo se, por vezes, e talvez mais por vício nosso, vemos suas peças adquirirem um sentido fisionômico, ou narrativo, como se fossem totens ou receptáculos de arcaísmos existentes em nossa sociedade industrial, a intenção do artista ao deslocar tais materiais ou sobras de seu contexto original para o da arte é a de recriá-los, injetando-lhes novos significados. Se persistem os resquícios expressionistas, não de todo superados, Salgueiro vai à frente de seus colegas escultores, introduzindo na escultura o som, depois o tato e, quase diria, o olfato. Um cheiro de fábrica, de oficina, de óleos  industriais. Daí para frente, e cada vez mais, se deixa envolver por este invólucro industrial e urbano. Cria esculturas-máquinas que "gritam" , "choram" e, desta maneira, irritam, imcomodam, sujam...

Esculturas-Máquinas
Depois dos "postes" e "tótens", seu projeto "Urbs" evolui para maior simplificação formal, com uma redução sensível do uso de materiais. Trata-se, agora, de programar lâmpadas fluorescentes acendem ou se apagam segundo um ritmo espaço-temporal modulado pelas cores puras. Em seguida à fase dos neons, Salgueiro realiza grandes esculturas-máquinas, constituídas de duas partes: na inferior, dentro de uma estrutura vazada, bem visível, o motor, ao qual se liga enorme lâmina de aço, ocupando o retângulo superior. Quando esta se movimenta, provoca ruídos, quase uivos, à maneira de um sintetizador de sons (estas peças foram vistas no pátio externo do Museu de Arte Moderna no Rio, em 1978, na manifestação que ali organizei, "O som do domingo", e em São Paulo, na Praça Rosevelt, em mostra coletiva de escultura ao ar livre). Como se vê, Salgueiros sempre teve preocupações cinéticas, ora privilegiando a luz, ora o movimento, e a ambos acrescentando o som.

Máquinas Pulsantes
É por volta de 1972 que ele começa a realizar suas máquinas pulsantes, ainda dentro do projeto "Urbs". Do ponto de vista formal, suas novas esculturas revelam um despojamento muito acentuado no sentido quase minimalista, sobretudo as derradeiras - "pias e "tanques". São blocos compactos e retangulares, construídos com alumínio ou chapas de ferro, mas lisas, como as estruturas industriais. Entretanto, não são minimalistas na medida em que seu significado não se restringe aos aspectos puramente visuais da forma. Pois no seu interior, como se fosse um ser vivo, há algo que pulsa, e que, ao nosso toque (no Interruptor) responde expelindo um óleo viscoso (esperma? sangue?) ou faz surgir a água, transparente ou borbulhantemente suja, como vômitos.

É que no interior dessas estruturas metálicas Salgueiro colocou motores hidráulicos que ao se movimentarem provocam ruídos e a expulsão espasmódica do óleo, que a própria máquina se encarrega de recolher. Em outros termos, a sístole e a diástole do coração. Ou também o orgasmo de um corpo que ama ( um parnasiano, dramaticamente diria: ou a hemoptise de um corpo que morre ). O líquido viscoso que escorre ela superfície-pele da estrutura-máquina é sugado para dentro da peça e novamente expelido, recomeçando o seu ciclo, eternamente. Trata-se, portanto, de um processo de retro-alimentação, de vitalidade realimentada, a ‘vida’ sempre renovada, como um moto - continuo, um ‘perpetuum mobile’.

Máquinas Celibatárias
A série ‘Urbs’, como se vê, evoluiu no sentido de uma gradativa interiorização: postes, sinais luminosos, buzinas, lâminas uivantes, motores, primeiramente expostos, como esculturas, em seguida abrigados dentro de corpos metálicos. De uma maior evidência cinética ele chegou ao despojamento minimalista, do enfoque sociológico a uma poética da máquina.

A confluência do visual e do sonoro-olfativo, em ritmo pulsante, dá grande força e atualidade à escultura de Salgueiro. Confluência também de qualidades estéticas e sociológicas ( muitos poderão ver em seu trabalho uma atitude crítica em relação à poluição ambiental ). Porém, acima de tudo isso, creio ser mais importante detectar no seu trabalho esta tentativa de captar e transmitir a "condição da máquina", sua intimidade ou interioridade, seus "espaços subjetivos". Tentar compreender a "natureza" da máquina e não as suas funções pragmática é tentar compreender a natureza do homem, pois as máquinas são projeções ( extensões ) humanas. Por enquanto solitárias estas "máquinas celibatárias" poderão, no futuro, a partir de sucessivos "casamentos", criar uma realidade à parte. Aí, então, será muito tarde. A arte tem, entre outras funções, a de preparar o homem para os ambientes futuros. Com suas antenas permanentemente ligadas, o artista antecipa, vislumbra, detecta os novos ambientes, as novas realidades. "Somos os primitivos de uma época futura", dizia Léger.
© Mauricio Salgueiro 2022
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